Sobre o Artigo “As evidências de que Jesus teria tido mais do que 12 apóstolos”, do G1
No dia 24 de julho de 2023, o G1 trouxe um artigo assinado por Edison Veiga, da BBC, sugerindo que os pesquisadores apontam que o número de 12 apóstolos é mais simbólico do que um relato exato da realidade.
O texto afirma que tal número 12 de apóstolos foi “Uma construção posterior à vida de Jesus que serviu para fundamentar a hierarquia dentro da comunidade dos cristãos primitivos.”
O artigo também trouxe um comentário do historiador André Leonardo Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que dizia: “Sobre a questão dos 12: eu diria que há uma forte tendência a ser uma representação simbólica, baseada nos 12 filhos de Jacó, nas 12 tribos de Israel [clãs familiares do antigo povo hebreu], ou mesmo em outras tradições. “Se de fato Jesus fez 12 apóstolos entre os seus seguidores, isso é disputável em termos de tradições manuscritas”.
O que queremos ver é se dentro dos textos bíblicos é realmente disputável que Jesus fez 12 apóstolos, porque se for olhar fora dele, realmente a evidência míngua bastante, mas afinal de contas, se for para não dar crédito ao texto bíblico, então é mais fácil dizer que nem sequer existiram apóstolos nenhuns.
Os historiadores consultados pela BBC estão um tanto confusos. Eles mesmos citam um trecho da carta de Paulo aos Coríntios, a primeira das duas, que diz o seguinte sobre o senhor:
1 Coríntios 15:5: “E que
foi visto por Cefas, e depois pelos doze.”
Chevitarese vê ali um problema que não existe. O mesmo problema que viram alguns tradutores e copistas. Achavam que era errado dizer que Jesus apareceu aos 12, porque Judas já havia caído e o 12º apóstolo ainda não havia sido reposto.
Por isso, diz a BBE (Bible in Basic English, 1965):
And he was seen by
Cephas; then by the twelve;
A Vulgata Latina e outros manuscritos também falam em 11. Mas o número ali no texto original parece mesmo ser a δώδεκα (doze).
“Paulo não sabia que tinha havido um traidor”, comenta Chevitarese. Parece incrível que um historiador se entregue tão facilmente à invenções de sua própria mente. Que evidência há de que Paulo, exímio estudioso, não averiguou o básico sobre os acontecimentos envolvendo o Cristo? Além de ser amplo conhecimento dos cristãos ainda vivos, Mateus havia escrito seu evangelho com 10 anos ou mais de antecedência em relação às epístolas paulinas. Não há motivo nenhum para crer numa afirmação desvinculada dessa, de que Paulo não sabia que Judas havia sido um traidor.
Mas o mais importante a se declarar aqui é o que o corpo de apóstolo passou a ser chamado de “os doze”. Mesmo que numericamente não havia doze, o nome daquela associação se manteve. (ver apêndice 1.)
“Está aí, de qualquer forma, a ideia dos 12. Mas é a única vez que Paulo menciona isso em suas sete cartas, todas datadas da mesma década”, afirma Chevitarese. Mas, e o que é que tem? Se está aí, está. E porque Paulo não cita os doze com mais freqüência? O próprio artigo publicado no G1 responde isso:
“Moraes acredita que
tenham sido 12 os formadores do núcleo principal dentre os que acompanhavam
Jesus, dado o simbolismo.”
Aí está algo a se prestar muita atenção: Os 12 formaram um núcleo inicial ao redor do qual o cristianismo se organizou no seu início, mas não por muito tempo. Em Atos capítulo 15, quando o apóstolo Paulo teve um desentendimento com cristãos fariseus em Antioquia sobre os gentios que se cristianizaram, seu caso foi ouvido em Jerusalém pelas principais lideranças cristãs. E quem eram elas, os 12 apóstolos? Não mais, pelo menos não só eles. Junto com os apóstolos, Atos 15:6 diz que o assunto foi considerado também por anciãos. Ou seja, o núcleo de autoridade estava migrando do grupo dos 12 para outro grupo maior, que ainda incluía os 12.
Curiosamente, a partir do versículo 13 de Atos capítulo 15, quem tomou a palavra, depois de realizada as discussões, foi Tiago, meio irmão de Jesus, que pareceu presidir aquele encontro. Ele pronunciou a decisão coletiva e providenciou que a esta fosse entregue às congregações.
Havia um núcleo inicial de 12 apóstolos designados por Jesus, mas esse núcleo já não tinha a mesmíssima importância nos dias de Paulo, e por isso ele não cita tanto os 12, e quando o faz, fala em retrospectiva, não o faz mencionando um ocorrido do momento.
Mais tarde, o texto publicado no G1 fica um tanto mentiroso, quando diz:
Quando a leitura é dos evangelhos — os quatro livros bíblicos que narram a vida de Jesus —, a situação se torna ainda mais complicada. “Isto porque só um autor do material neotestamentário mencionou o que exatamente seriam esses 12”, pontua Chevitarese. “Isso você vai encontrar em Lucas, capítulo 6. É um livro comumente datado como sendo dos anos 90, do final do primeiro século.”
Ou seja: é um relato já escrito sob a “contaminação ideológica”, intencional ou não, de uma igreja primitiva que surgia. E o autor não havia presenciado, ele próprio, os episódios que narrava.
Não é assim. O evangelho de Mateus, datado comumente como sendo de cerca de 40 d.C.m menciona no capítulo 10 os 12 apóstolos por nome, da mesma forma que Lucas 6 o fez. Em Marcos Capítulo 3 se dá o mesmo. Chevitarese parece ter se esquecido de procurar na própria Bíblia o que o material neotestamentário menciona.
Depois o artigo contrasta os apóstolos com os seguidores. Apóstolos eram seguidores, mas nem todo aquele que seguia a Cristo era um apóstolo. Comenta o artigo:
Mas quantos de fato seguiam Jesus? Para Chevitarese, “era um movimento muito pequeno e intrajudaico”. “Não estamos falando de um candidato messiânico que arrastava multidões. Jesus era uma liderança popular situada basicamente no ambiente galileu e movimentava um pequeno número de aderentes”, analisa.
Mateus tem um relato diferente de Chevitarese:
Mat 9:36 E, vendo as multidões, teve grande compaixão delas, porque andavam cansadas e desgarradas, como ovelhas que não têm pastor.
Não era um movimento que se dava basicamente no ambiente Galileu, já que foi nas proximidades do templo que Jesus foi saudado com palmas. Isso em Jerusalém, muito longe da Galiléia.
Uma pista sobre quantos eram esses pode ser encontrada também na carta de Paulo aos Coríntios, pois logo na sequência ao trecho em que ele menciona os 12, ele afirma que Jesus também teria sido visto por “mais de 500 irmãos de uma só vez”.
Apóstolo
ou discípulo — e uma apóstola mulher
Sob o subtítulo acima, o artigo entra etimológica, parecendo ter dificuldade em entender o que são apóstolos e discípulos. Os primeiros são um grupo seleto dentro do segundo. Diz o artigo:
Mas se a fonte mais antiga para legitimar a existência dos 12 é Paulo, o mesmo Paulo indica que havia outros apóstolos — assim chamados. Inclusive mulheres.
Nesse ponto, retorna ao erro de não ter lido com cuidado o que Mateus e Marcos disseram, voltando ao engano de afirmar que somente o posterior relato de Lucas menciona os 12. Mateus precede as epístolas paulinas.
Daí, o artigo continua:
Na carta aos Romanos, também dos
anos 50, ele saúda o casal “Andrônico e Júnias, meus parentes e meus companheiros
de cativeiro”. E diz que os dois “são apóstolos eminentes e pertenceram a
Cristo mesmo antes de mim”.
“Ele, Paulo, está dizendo que esses caras notáveis ali estavam entre os apóstolos. E tem mulher aí, a Júnias”, comenta Chevitarese. “Ela era uma apóstola.”
Este é Romanos 16:7. Acredito que o leitor entenderá melhor o que Paulo quis dizer, ao ler o próprio versículo em três traduções em português:
(João Ferreira de Almeida Atualizada, 1877 ) Saudai a Andrônico
e a Júnias, meus parentes e meus companheiros de prisão, os quais são bem
conceituados entre os apóstolos, e que estavam em Cristo antes de mim.
(Tradução
do Novo Mundo) Saudações a Andrônico e a Júnias, meus parentes
e companheiros de prisão, que são homens bem conhecidos pelos apóstolos e estão em união com Cristo há mais tempo do que eu.
(VIVA) Depois, há
ainda Andrônico e Júnias, meus parentes, que estiveram comigo na prisão. Eles
são respeitados pelos apóstolos, tendo-se tornado cristãos antes de mim. Peço
que lhes transmitam minhas saudações.
Veja mais traduções no apêndice
2.
EU trabalhei numa empresa onde eu era bem conceituado entre
os diretores dela, mas isso não tornou obrigatoriamente um diretor. Andrônico
e a Júnias eram bem conceituados entre os
apóstolos, mas não eram apóstolos. Se sofreram encarceramento, como Paulo
menciona, os apóstolos só poderiam tê-los em alta estima mesmo.
Depois disso, o artigo começa a falar de mulheres
seguidoras de Cristo, algo que nada tem que ver com o apostolado. Seguidoras
tinham, e muitas. Maria e Marta, por exemplo, eram mais duas delas. Citar tais
mulheres, como Maria mãe e a Madalena só mostra quão confusos estão autor do
artigo e pesquisadores. A confusão deles é tanto que o artigo continua assim:
O historiador Chevitarese avalia que a ideia do grupo seleto dos doze pode ter sido “uma invenção de Lucas mesmo”. “Porque em Atos [o livro Atos dos Apóstolos, também escrito por Lucas, que narra os primeiros passos do movimento depois da morte de Jesus], ele vai criar, vai inventar a tradição apostólica”, contextualiza.
Correndo o risco de ficarmos entendiantes,
relembramos que Mateus e Marcos já falaram dos 12. Mas o mais incrível mesmo é
que o próprio Chevitarese menciona Paulo citando os 12 em 1 aos Coríntios, muito
tempo antes da escrita de Lucas. Então Lucas inventou os 12, voltou no tempo, e
passou a informação para Paulo?
Voltando ao título do artigo, “As evidências de que Jesus teria tido mais do que 12 apóstolos”, podemos dizer que vimos aqui um artigo de gente confusa, que não sabe diferenciar apóstolo de discípulo ou seguidor. A propósito, Apóstolo significa “enviado”, e sim, houve um apóstolo além dos 12. Paulo, apóstolo das nações, porque foi enviado para pregar as nações. Ele,obviamente, não era um dos 12 do núcleo inicial.
Apêndices
1) Os doze de 1 Corintios 15:5:
Then of the twelve - Instead of δωδεκα, twelve, ενδεκα, eleven, is the reading of D*EFG, Syriac in the margin, some of the
Slavonic, Armenian, Vulgate, Itala, and several of the fathers; and this
reading is supported by Mar_16:14.
Perhaps the term twelve is used here merely to point out the society of the
apostles, who, though at this time they were only eleven, were still called the
twelve, because this was their original number, and a number which was
afterward filled up. See Joh_20:24. –
Adam Clarke's Commentary on the Bible
Then of the twelve - The apostles; still called “the twelve,” though Judas was
not one of them. It was common to call the apostles “the twelve.”
Albert Barnes' Notes on the Bible
2) 2) Mais traduções de Romanos
16:7
(Almeida
Fiel ao Texto) Saudai a
Andrônico e a Júnias, meus parentes e meus companheiros na prisão, os quais
se distinguiram entre os apóstolos e que foram antes de mim em Cristo.
(American Standard Version) Salute Andronicus and Junias, my kinsmen, and my fellow-prisoners, who are of note among the apostles, who also have been in Christ before me.
(Contemporary English Version) Greet my relatives Andronicus and Junias, who were in jail with me. They are highly respected by the apostles and were followers of Christ before I was.
(English
Standard Version) Greet
Andronicus and Junia, my kinsmen and my fellow prisoners. They are well known
to the apostles, and they were in Christ before me.
(Rei
Jaime) Salute Andronicus
and Junia, my kinsmen, and my fellowprisoners, who are of note among the
apostles, who also were in Christ before me.